Fernando Freitas Fuão (*)

Prudência. É preciso deixar a poeira sentar, baixar as águas até para pensar e pesar.  Diante das possibilidades que se cogitam para a solução futura da crise ambiental que  acometeu Porto Alegre e Canoas e outras cidades do interior do Rio Grande do Sul, todas elas  são de caráter monumental, e de alto investimento e algumas de alta irresponsabilidade. Diria  antecipadamente, tão catastróficas ou mais que a inundação. Refiro-me às políticas de evacuação e abandono, que se acenam na internet de bairros inteiros de Porto Alegre, ou do  Mathias Velho em Canoas; ou a cidade de Eldorado do Sul; e a correspondente reconstrução  dessas cidades e bairros em outros lugares. 

Vou tomar aqui o exemplo hipotético do Bairro Mathias Velho em Canoas, exatamente pelos  boatos que fluem na internet, mas que não são verdadeiros até o momento. O fato desse  gigantesco contingente humano (22 mil pessoas em Canoas e 10 mil em Porto Alegre) saindo  de suas casas já se constituiu numa tragédia nunca vista antes no Brasil. Abandonar suas casas,  seus tetos, seu chão é algo extremamente doloroso. Todas essas pessoas querem voltar o mais  rápido possível para seus lares, mesmo que tenham perdido ‘tudo que estava lá dentro. Mas  esse ‘tudo’ na realidade não é tudo, é real, mas também uma força de expressão. Da casa,  restam ainda as paredes, a carcaça. Pouco? Sim, porém quando baixar as águas pode ser  muito; essas casas estão cheias de esperança e passíveis de acolhimento quando secarem. Em  cada tijolo assentado de cada casa há muito trabalho, muito sacrifício despendido para sua  construção. Cada centímetro que a água ocupou não é um centímetro qualquer é um  ‘sentimetro’ que nenhuma baliza consegue medir.  

Mathias Velho é um desses lugares que foi ocupado por pessoas sem moradia na década de  70-80. Muitos hoje já nasceram ali e até constituíram novas famílias. Ao longo desses anos as  ruas no seu cotidiano foram se impregnando de relações de vizinhança, construindo amizades,  memórias; tornaram-se vivas e até conflitivas, mas ainda assim é o ‘lugar’. Nem mesmo as águas conseguiram arrastar as memórias impregnadas nas paredes e nas ruas. Toma-se aqui o  exemplo do bairro Mathias Velho pelas tristes e angustiantes imagens que presenciamos esses  dias e agora fazem parte do nosso imaginário. Matias Velho porque também é exemplar para  demonstrar a indissolubilidade entre homem e casa. Ciente que não irão para uma Cidade  Temporária; entretanto, não se pode garantir que não acontecerá com outras populações  vítimas das enchentes. 

A maioria das pessoas e inclusive muitos políticos desconhecem a formação do bairro Mathias  Velho. Uma ocupação urbana oriunda do Movimento Comunitário entre os anos 1975 e 1988, viabilizada pelas as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) de luta pela moradia, voltada às  pessoas que não paravam de chegar a Porto Alegre, vítimas do Êxodo Rural, e não tinham  onde morar. O finado Irmão Antônio Cechin e sua irmã Matilde protagonizaram essa ocupação  e construção entre outros atores importantes junto às CEBs. O bairro Mathias Velho está numa  zona de risco, era uma fazenda de gado e de plantio de arroz de um militar; um banhado, nada apropriado para residências devido às constantes cheias do Rio dos Sinos, só diminuiria no  final dos anos 60 quando foi construído o dique. São esses lugares que sempre resta de Norte  a Sul do País para os pobres. O restolho. 

Vamos à questão central que está agitando as redes e as mídias: a questão física estrutural  material da casa, aa perda da casa. Logo, o fato mais relevante não visível subjacente, uma  poderosa e profunda estrutura maior que a casa que mantêm a vida dessas pessoas: a  estruturação social do bairro que acaba se confundindo com a própria estruturação urbana e  de seu dia a dia. Manifesta no vai e vem da escola, da creche, do comércio, do hospital, do  Pronto Socorro, da Universidade, a corredeira para pegar o Metrô (Trensurb). Geralmente  tende-se observar o aspecto material físico da cidade, não percebendo a infinidade de relações  que se dá num simples andar de um lugar a outro, não se percebe porque estamos  mergulhados nessas relações. Isso chamamos de cotidiano, rotina, hábito, o mesmo de hábito  do habitar, o fator que estabiliza e estrutura o tempo e a vida, as memórias de uma comunidade, o tempo de cada um, o ritmo. É o cotidiano que também organiza a psique de  seus moradores, ele é tão vital como o ar para que as pessoas estabeleçam também a relação  de espaço tempo, ‘passado-presente-futuro. Alterar essa estrutura é desestruturar a questão  espaço-tempo, retirar o chão, permitir o deslizamento. Por serem intangíveis, nem mesmo as  águas conseguiram levar as memórias, estão lá submersas junto com a casa física, não mortas só aguardando. Se as águas é o que mantêm essas memórias vivas lá, não quer dizer que os  políticos gananciosos não o possam destruí-las de um momento para outro com um simples  ato inconsequente, tal como a construção de Cidades Temporárias. 

A população abrigada permanece em estado de choque, vivendo já há mais de três semanas em pequenos abrigos improvisados sem eira nem beira. Alguns políticos querem que essas  pessoas se desloquem mais uma vez, desta vez para uma cidade abrigo, á ser construída. Se a  enchente constituiu um trauma, o novo deslocamento será uma erosão psicológica; e não  haverá balizas para medir os níveis. 

Não se pode acabar com a esperança do retorno á casa. Voltar a sua casa é um imperativo,  assim como relutar abandoná-la, algo análogo a abandonar a existência. Alguns pagaram um  forte preço pela decisão de ficar. A relação casa e morador é uma relação existencial que nem  a filosofia conseguiu dar conta. É essa possibilidade de retorno a casa, e não o retorno das  águas que tem alimentado a sobrevivência dessas pessoas nos abrigos, somado a gigantesca  solidariedade vinda de fora. Essas pessoas tem o desejo de retornar ao seu aninhamento, aos  velhos hábitos e à rotina. Deixar as águas baixarem, retirar o barro do bairro, e voltar.  

A ideia de Cidades Temporárias funciona muito bem para poucos dias e ambiente festivo como  o Burning Man (contém ironia). As vítimas das guerras e das catástrofes atestam o contrário, quando estão em campos de refugiados, só há pobreza, fome e miséria e a desesperança  campeia solta no cercamento. Até as relações de amizade são temporárias. Então, o que fazer  com um bairro, uma cidade quando se resolve abandoná-la? Fechá-la, cercá-la, deixar virar  fantasma? Ululante que seria ocupada novamente em poucos dias por novos moradores.  Destruí-la? Seria um ato insano num País onde milhares de pessoas ainda segue sem moradia. 

A idéia do ‘novo normal’ é tudo que o capitalismo e o fascismo precisam. Temos que entender  que todos os problemas anteriores da Mathias Velho, ou de qualquer bairro alagado da Zona  Norte de Porto Alegre não ficarão para trás, irão agora para um espaço literalmente de  confinamento por alguns anos até a finalização das casas novas. Os problemas estão mais nas  pessoas do que nas casas. Em Porto Alegre a remoção e relocação tem sido a política predileta  dos políticos coroada exemplarmente as obras para os preparativos da Copa do Mundo de  2014. Nos sobra expertise para arruinar vidas e bairros quando a temática é essa. Dez anos  depois muitas das relocações seguem sem efetivar-se, e as obras seguem; como na Moeb  Caldas, Vila Tronco. Esses deslocamentos nunca são satisfatórios quando se trata de fazer  justiça ao valor equivalente da antiga casa e a nova. Não há também uma equivalência com as  relações interpessoais construídas ao longo de anos, cada casa é diferente da outra, cada uma  tem sua identidade.

Certamente o modelo habitacional definitivo para as novas casas será o de sempre: casas  grudadas umas as outras, porta e janela, para maximizar o custo do terreno e infraestrutura; ou em bloco de apartamentos de quatro pavimentos isolados um dos outros. Nenhum deles  deu certo e somente estimularam mais violência. Para manter essa Cidade Instantânea será  necessário um forte regime disciplinar e de controle: horários de entrada a noite, uso dos  banheiros coletivos, horários de silêncio. Atuará toda disciplina militar para que possa se  viabilizar. Há críticos que já alegam que será o tráfico quem vai comandar essa cidade, ou as  milícias, não haverá cenário paradisíaco, nem praça nem jardim. O que se verá será o mesmo  de experiências anteriores: crianças brincando com os cachorros na terra empoeirada no  verão, na lama do inverno. A maioria das pessoas não tem noção o que seja uma cidade desse  tipo e a extensão que possa vir a ocupar. Sua aparência deverá se assemelhar a um grande  acampamento militar de guerra com barracas e ou container e grandes tendas, quiçá com  sorte: pequenos habitáculos de painéis de mdf ou similar simulando mini casas. No verão essa  cidadela se tornará um verdadeiro inferno, e no inverno algo glacial. Cabe a pergunta: Quanto  tempo pode suportar um idoso, uma criança especial e seus pais num abrigo desse tipo? 

Uma espécie de delírio alucinatório das águas tomou conta de tudo e da cabeça de todos,  desde a ideia de Cidades Temporárias até as propostas de micro acampamentos para os  flagelados ocupando praças e parques em barracas em abrigos temporários espraiados pela cidade. Tudo parece surreal, até as ideias parece terem se afogado, e as soluções boiam nas  redes como lixo sobre as águas, tudo parece deslocado do tempo e do contexto. Vivemos no  Sul do Brasil e dentro de três semanas estaremos ingressando no inverno, talvez um dos  invernos mais rigorosos que teremos que atravessar, viver em barracas em situação precária é  quase um suicídio para os idosos, crianças e recém-nascidos, e deficientes. 

Seria mais fácil e mais econômico fornecer de imediato assim que baixar as águas um recurso  para a cada família, comprar: material e ferramentas para limpeza, fogão, geladeira, estufa,  televisão, um notebook para os estudantes, custo que não chegaria a R$ 10.000,00. Se alguém  quiser assim, existe essa possibilidade. Uma vez dentro de suas casas poderia haver a  solicitação de auxílio reforma para casa, onde os itens seriam: tintas para pinturas, material  rebocos, revestimentos cerâmicos, substituição e reparos de aberturas, rede elétrica; cada  morador saberia o que demandar de auxílio e como poderia pagar com subsídios do Governo  Federal, Estadual e Municipal. Enquanto se efetivam as obras vitais de contenção das águas  com tecnologias adequadas e atualizadas. Uma alternativa proposta apresentada,  extremamente bem vinda, é a ocupação e uso de prédios desocupados Federais, Estaduais e  Municipais. 

Voltar para casa, reconstruir e remobiliar o que restou, a paz de estar dentro da casa no estado  que tiver. Como se diz: preciso dormir essa noite em casa, ‘na minha cama’, mesmo que seja  só um colchão usado no chão. Essa casa sem sentido, esvaziada como um corpo sem órgãos  ainda é a casa de cada um. Literalmente uma querência, o lugar sempre de voltar; mesmo que  não passe de uma carcaça. É ali o lugar onde se fixa e se estabelece; se ordena a vida e a  psique; o lugar onde começa a orientação da vida. A casa é ponto de partida e de chegada de  todos os trajetos possíveis na vida, ela não só dá proteção como estabiliza. O lugar onde se diz  correntemente se que se carrega as baterias para o dia seguinte. É preciso ajuda econômica  para isso, bem menos do que irão gastar com os projetos megalomaníacos desses acampamentos, eufemisticamente chamada Cidades temporárias; e quiçá muito menos que a  inclusão no Plano Minha Casa Minha Vida, nas mãos da CEF. Medida emergencial e necessária,  mas certamente quem lucrará serão as Construtoras e talvez nem daqui; a Alvarez & Marsal já  está em prontidão, àquela envolta nas águas da corrupção do Sergio Moro e da ‘Lava Jato’.  Nesse momento é preciso estar atento: há uma ‘indústria da desgraça’ montada sobre a  infelicidade dos outros, não somente os saqueadores, também as grandes Construtoras  internacionais especialistas em reconstruções de pós-guerra e cataclismos. 

O alerta já foi dado há anos pelos ambientalistas. Agora, é preciso recuar e reaprender com a  natureza, adaptar-se a seus ciclos e anomalias. Veneza por exemplo, até os dias de hoje sofre  alagamentos, e nem por isso resolveram abandonar a cidade. Há centenas de anos tiveram  essa oportunidade, mas não fizeram; cientes das cotas de inundação deixaram pisos  intermediários em suas casas de três e quatro pavimentos sem nada, apenas para atracação de  barcos e a espera da chegada das águas. Não é preciso ir longe, temos as riquezas de soluções  das populações ribeirinhas da Amazônia. Por exemplo: a cidade de Iquitos no Peru, com suas  palafitas e barcos, vivendo em harmonia com o ciclo das águas do Rio Amazonas e Maranhão.  O manancial de soluções adaptativas é gigantesco, podemos encontrar aqui mesmo no Estado.  Todas essas culturas aceitaram a natureza e se organizaram para viver de acordo com ela. E a  partir dessa aceitação que se criou a diferença, tornando-as especiais.  

A barragem, o dique do Mathias Velho e o muro Mauá funcionaram e não funcionaram  simultaneamente. Funcionaram porque retardaram em algumas horas o avanço dentro da  cidade evitando um desastre maior. Em Porto Alegre não funcionou pelo total descaso da  Prefeitura há anos em fazer a manutenção, e uma total renovação do sistema de defesa. Em  Canoas o dique deveria ser mais alto do que o atual cinco metros. O muro e o dique são  alternativas viáveis desde que acompanhadas de um sistema satisfatório de casas de  bombeamento e outras questões técnicas que devem acompanhá-los. Os atuais sistemas de  defesa, imunidade devem ser urgentemente atualizado. Há muitas possibilidades também de  pequena envergadura, no Mathias Velho, por exemplo, poderiam ser criadas estruturas  refúgio elevadas tipo 10-12 metros de altura, em regiões do bairro onde as pessoas pudessem  se dirigir em eventual catástrofe, simultaneamente seriam Centros Sociais e de Cultura. Outra  possibilidade treinar a população para deslocar seus móveis para o pavimento superior da  casa, se houver essa possibilidade, uma prática recorrente na Mathias. Talvez fornecer  subsídios para criar pequenos refúgios externos elevados para a colocação dos móveis.  Fundamental é planejar, projetar, prever soluções, despejar recursos na Defesa civil e na Crise  Ambiental, é uma realidade e já passamos do ponto de inflexão de retorno adequado. O  deslocamento de cidades, de bairros inteiros, populações, tem tudo para dar errado, e  infelizmente em algumas cidades do Rio Grande do Sul não reste outra solução.  

É preciso pesar e pensar bem. Certamente a prudência e a vivência do Prefeito Jorge Jairo de  Canoas não cogitará qualquer remoção; ao contrário sua expectativa é de elevar mais a ainda a  altura do dique para 7 metros. Talvez, sempre um talvez quando se evoca a prudência; aprendendo um pouco com o Ir. Antonio Cechin e a Matilde e suas pequenas grandes obras de  organizar e construir dia a dia a vida dessas populações de miseráveis nos momentos em que  não tinham nada, absolutamente nada; pode ainda nos dizer algo. Quando criaram o Clube de  Mães, no intervalo da confecção dos acolchoados de trapos, lia-se um texto bíblico, fazia-se o  trabalho de conscientização política da Teologia da Libertação, enquanto faziam os  aconchegantes que aqueciam o inverno úmido e molhado; elas agasalhavam também os  sonhos e as lutas constantes que deveriam ser travadas ainda. E assim, se fez o Mathias Velho  do nada em seus primeiros tempos.

(*) Fernando Freitas Fuão é professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio  Grande Sul. Pesquisador do CNPq desde 1992 estudando Galpões de Reciclagem, e as Ocupações no Centro de  Porto Alegre a partir de 2000 até 2020. Sua prática extensionista é voltada para os moradores de rua e catadores. 

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Publicado originalmente no Sul21

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